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Poucas questões geram tanta controvérsia quanto o debate sobre mérito e privilégio nas aprovações dos vestibulares. Afinal, quem passa realmente conquistou a vaga por esforço próprio ou foi beneficiado por condições estruturais favoráveis? Para além das respostas fáceis e das convicções prontas, essa é uma questão que exige profundidade, pois toca em um dos pilares centrais da sociedade: o acesso à educação como meio de ascensão social.

A narrativa do mérito, tão popular quanto reconfortante, sustenta que a aprovação é resultado direto do empenho individual. O estudante que se dedica, abdica de lazer, segue um método eficiente e mantém disciplina teria, inevitavelmente, sucesso. Essa perspectiva faz sentido quando olhamos para histórias inspiradoras de alunos que, mesmo em condições adversas, conquistaram vagas disputadas. No entanto, essa visão se torna frágil quando esquecemos que os pontos de partida não são os mesmos para todos.

Pensemos em um jovem de classe média alta, cuja trajetória escolar foi marcada por escolas particulares de excelência, aulas extras no contraturno, viagens culturais e um ambiente familiar estimulante. Seu estudo, ainda que árduo, ocorreu sobre uma base sólida. Agora, comparemos essa realidade com a de muitos estudantes da rede pública, que enfrentam a precariedade de um ensino defasado, salas de aula superlotadas e a necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar. Ambos se esforçaram, mas é evidente que os obstáculos foram desigualmente distribuídos.

A ideia de que basta querer para vencer ignora um aspecto essencial: o privilégio não anula o esforço, mas o potencializa. Ter acesso a bons professores, livros atualizados, um ambiente tranquilo para estudar e, principalmente, tempo disponível, faz a diferença. A metáfora clássica da corrida ilustra bem essa questão: se dois corredores largam de pontos distintos, aquele mais próximo da linha de chegada precisará de menos esforço para vencer. Isso não significa que ele não correu, apenas que sua vitória foi facilitada.

O sociólogo Pierre Bourdieu já demonstrava como a escola reproduz as desigualdades sociais por meio do que chamou de “capital cultural”. Ou seja, além dos recursos financeiros, há um conjunto de conhecimentos, hábitos e referências que favorecem certos grupos na disputa educacional. Filhos de pais com ensino superior, por exemplo, tendem a crescer cercados por discussões que enriquecem seu repertório intelectual, algo que inevitavelmente reflete na escrita da redação, na interpretação de textos e na compreensão dos conteúdos exigidos nas provas.

Diante desse cenário, o vestibular tradicional, que se pretende um avaliador imparcial de mérito, torna-se um espelho das desigualdades sociais. O Enem, com a adoção de políticas de cotas e bônus, busca corrigir parte dessas distorções, oferecendo oportunidades mais equitativas. Mas a resistência a essas medidas muitas vezes vem do mito da meritocracia pura, que enxerga qualquer tipo de ajuste como um privilégio inverso, desconsiderando que, na realidade, o sistema nunca foi neutro.

Isso não significa negar o mérito individual. Afinal, cada aprovado trilhou um caminho árduo, superando desafios pessoais. Mas é necessário reconhecer que talento e esforço, sozinhos, não bastam. O contexto em que se desenvolvem é determinante. O verdadeiro mérito, portanto, não está apenas na dedicação individual, mas na capacidade de a sociedade criar mecanismos que permitam que o esforço de todos, independentemente da origem, tenha a mesma chance de florescer.

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